Se dormir, não dirija

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Imagine. Só imagine. Uma mulher toma seu cafezinho, tranquilamente, e ao sair, lembra de tomar uma dipirona, para fazer seu procedimento estético logo em seguida. Uma simples dipirona para não sentir a dor das agulhadas.
Abre a bolsa, pega a bolsinha dos remédios e toma o comprimido branco. Sai para o corredor do shopping, desce até o terceiro piso das garagens, acompanhada da irmã. Costuma estacionar o carro no terceiro piso porque lá sempre tem espaço para estacionar sua grande camioneta.

Arranca com o carro e logo em frente encontra a primeira curva. Bom espaço, nada para se preocupar, porém, o canto do para-choque é o primeiro a se chocar contra a parede do corredor, seguido por toda a lateral, ouvindo-se a quele barulho de metal amassado. Um cano situado estrategicamente naquela lateral foi literalmente cortado ao meio.
A mulher mal ouve os barulhos, segue dirigindo. Dá uma olhada no espelho e fica feliz com a cara tranquila que enxerga. Segunda curva e mais uma vez o carro teimoso vai encontrar a parede, agora com o espelho retrovisor, que após o embate, resta pendurado ao lado da porta. A motorista, no entanto, segue tranquila, como se tivesse acabado de sair de uma sessão de meditação.

A irmã, do mesmo modo, tranquila, sentada ao lado. Nem um pio.
Quando parecia que nada mais aconteceria, o carro entra na terceira e última curva, e o barulho repentino é de algo caindo e sendo arrastado, mas a motorista só percebe, quando escuta alguém gritando. Olha para o espelho interno e vê um homem fazendo sinais, carregando nada menos que seu para-choque.

A cena é bizarra: ela para o carro, abaixa o vidro e ouve o homem perguntando:
•⁠ ⁠A senhora não quer levar?
Ela, sem muito interesse, pede que coloque o parachoque no bagageiro, fazendo o favor, mas nem sequer desce para abrir o porta-malas.
Sai para a rua e duas quadras adiante chega no estacionamento do prédio da médica.
Mira a vaga do canto, fazendo pouco caso da advertência do funcionário que lhe diz que o carro não caberia. Dá marcha a ré e agora é a lateral direita que arranha toda a parede.
A porta do caroneiro empenou, a irmã tem que pular por cima do console para sair pela porta do motorista.
Ambas saem e permanecem por duas horas no consultório da médica, conversando amenidades.
Passado o efeito do remédio, só então, ao chegar na garagem e olhar o que um dia foi sua camioneta, ela, estarrecida, pensa no acontecido.

Abre a bolsa. Pega a bolsinha dos remédios e coloca as mãos na cabeça. A dipirona seguia lá no seu quadradinho, dando falta, então, de outro comprimido, para dormir. Daquele bem forte, sabem?
Esses comprimidos são todos iguais, redondos ou ovais, branquinhos, afinal.
Agradeceu, intimamente, porque a tragédia se resumira ao carro.
O difícil foi contar para o marido, mas como ele nem quis olhar o carro, omitiu os detalhes, até porque seria difícil de acreditar.

Também foi difícil convencer o funcionário do seguro que não havia seguro de terceiro para acionar, pois os danos haviam sido causados por ela própria, e pior, no estacionamento de um shopping.
O valor do conserto foi absurdo, mas inusitado mesmo foi o contato de sua irmã, um dia depois, dizendo ter adorado a tarde que passaram juntas. Apenas ao final da conversa lembrou de perguntar sobre o carro, lastimando ter esquecido a sacola de mimos que havia ganho da irmã, arrematando que, afinal, estavam “bem patetas naquela dia”.
Até agora, ela desconfia, que deve ter oferecido um comprimido branquinho para a Irmã, achando se tratar de uma balinha.

Eu? Sou a amiga para quem ela contou essa história, com muitas gargalhadas, e juro que é verdade esse bilhete.